Os repórteres Paulo Renato Soares e Mohamed Saigg tiveram acesso com
exclusividade a mais de 20 mil fichas hospitalares suspeitas de fraudes e erros
grosseiros. Na Bahia, o homem que deu à luz! Em Rio Bonito, o irmão de Ana
morreu duas vezes!
Em Maricá, a mulher que tirou a próstata. E em São Paulo,
encontramos o rapaz que já morreu. Acredite: esses casos são a prova de que
hospitais em todo o Brasil operam milagres na hora de cobrar por atendimentos
pelo SUS - o Sistema Único de Saúde. Fraudes que tiram milhões de reais da
saúde brasileira.
E erros que revelam a fragilidade de um sistema criado
justamente para melhorar o controle sobre as internações. Ednilton mora em uma
casa, na periferia de Salvador. É casado e tem três filhos. Ele procurou o
hospital geral Roberto Santos, em 2011, para fazer uma pequena cirurgia. A
instituição apresentou a fatura e recebeu do SUS pelo serviço.Ednilton Silva:
Eu entrei pela parte da tarde e sai no outro dia pela manhã.
Fantástico: Não deu nem 24 horas?
Ednilton Silva: Não.
Mas o que ninguém sabia até agora é que o hospital apresentou
uma outra conta sobre a passagem do paciente naquela época. A fatura tem um
período de internação maior, valores mais altos. E um procedimento no mínimo
surpreendente para um homem. Segundo o registro, Ednilton passou por uma
cesariana, teria feito um parto. E o SUS pagou por isso.
Ednilton: Em contrapartida, ainda querem inverter minha
posição, né?
Mulher: Querem fazer você de mulher, né?
O documento usado pelas instituições de saúde - públicas ou
particulares - para cobrar os gastos com um paciente internado pelo SUS é a AIH
- Autorização de Internação Hospitalar.
Se um paciente precisa ser internado, uma AIH é aberta em seu
nome. Ali devem constar dados pessoais e todos os procedimentos médicos pelos
quais passou. Assim que a pessoa recebe alta, a AIH é encaminhada para o SUS.
O Sistema Único de Saúde libera o pagamento composto por
verbas federais, estaduais e municipais para os hospitais. A AIH do parto de
Ednilton mostra que ele teria ficado seis dias internado. Custo: mais de R$ 1
mil reais.
Ednilton: Uma falha
muito grande, né?
Fantástico: E aqui tá dizendo que o motivo de saída é que
você teve alta e o recém-nascido também.
No ano passado, o SUS gastou mais de R$ 11 bilhões com o
pagamento de autorizações de internações hospitalares. Mas, segundo auditores
do Datasus - o banco de dados do SUS , há irregularidades em, no mínimo, 30%
das AIHs.
“Essas denúncias são muito graves porque elas fazem parte de
um universo de um milhão de internações que são realizadas pelo SUS todo mês”,
afirma o professor de medicina da USP, Mário Scheffer.
O Fantástico teve acesso a informações de mais de 20 mil
autorizações de internações hospitalares com suspeita de fraudes, feitas de
2008 até agora. E percorreu o Brasil para saber se as histórias no papel eram
as mesmas contadas pelos pacientes.
Morto duas vezes
Em Rio Bonito, no interior do estado do Rio, a morte do
aposentado Sinésio da Costa Pereira, há quase cinco anos, foi muito difícil pra
família. Ele ficou internado por quase três semanas com várias complicações.
Foi sepultado em 21 de dezembro de 2008.
Sinésio morreu na clínica Santa Helena, em Cabo Frio, também
no estado do Rio. Mas, pelos registros do hospital, a história dele não termina
aí. Ele teria voltado à clínica em março de 2009, pelo que consta numa segunda
AIH aberta em nome dele. E depois de 21 dias de internação teria morrido pela
segunda vez.
Fantástico: Março de
2009...
Irmã do Sinésio: Não,
já tinha quatro meses de falecido.
Fantástico: A senhora tem ideia por que fizeram uma nova
internação pra ele?
Irmã do Sinésio: Nem imagino...
A clínica usou os dados de Sinésio para cobrar outra vez do
SUS. Mas, repare que, em vez de repetir os valores da AIH verdadeira R$ 4,2
mil, a instituição pediu mais de R$ 11 mil.
“Não tem lógica isso aí. Se a pessoa morreu, foi sepultada,
como que ele faleceu de novo?”, questiona Ana Cavalcanti, irmã de Sinésio.
As fraudes nas AIHs permitem outros absurdos, como uma mulher
que passou por uma operação da próstata, um órgão masculino.
Crenilda foi até à casa de saúde Santa Maria, em São Gonçalo,
na Baixada Fluminense,
para operar a vesícula. Passou dois dias no hospital. A
instituição criou uma segunda AIH com os dados da paciente. Mudou apenas o sexo
no registro. E cobrou do SUS o procedimento que só pode ser feito em homens.
Crenilda: Ué. Eles fizeram isso?
Fantástico: Cobraram por esse serviço em você. A retirada da
sua próstata.
Crenilda: Que isso, que absurdo.
Fantástico: O que parece isso pra você?
Crenilda: Que usaram isso pra ganhar dinheiro mesmo.
“É preciso esclarecer porque os serviços de regulação,
controle e auditoria falharam e deixaram que fossem feitos pagamentos mesmo
diante de irregularidades”, diz Mário Scheffer.
Não é só a possibilidade de desvio de recursos. A falta de um
controle rigoroso sobre o sistema de pagamento de AIHS também permite erros e
falhas de informações.
O sistema não detectou o que aconteceu com o Júlio Cesar, que
você conheceu no começo desta reportagem.
Julio Cesar: Óbito?
Ele sofre de anemia falciforme e frequentemente precisa ser
internado.
Mas numa passagem pelo hospital Vereador José Storopolli, em
São Paulo, em 2008, ele foi declarado morto.
Fantástico: Aqui ó, diz que papai morreu em 2008.
Julio: Papai está mais vivo.
Julia: Não, mas ele não morreu não.
Fantástico:Não morreu? Tem certeza?
Julia: É, ué. Ele tá vivo!
Mesmo após a suposta morte, todas as outras internações de
Júlio Cesar foram autorizadas e pagas, sem que ninguém percebesse o erro. Hoje,
ele está aposentado por invalidez. Quando soube que era considerado morto,
ficou com medo de perder o benefício do INSS.
Fantástico: Se essa informação tivesse ido adiante, tivesse
passado pra outros órgãos do governo, isso te prejudicaria muito.
Julio Cesar: Muito. Documento, você não ia conseguir tirar.
Esse benefício meu eu ia perder, muita coisa.
Júlio Cesar foi dado como morto e está vivo. Em Barra Mansa,
no interior do Rio, aconteceu o contrário. Valmir teria saído do hospital vivo,
mas está morto. A sobrinha e a irmã dele confirmam a data da morte: 16 de
outubro de 2009.
Fantástico: 16 de outubro é quando o hospital disse que ele
saiu de alta.
Ruana: Então cadê o homem, gente? Está debaixo da terra uma
hora dessas.
E tem mais: pelo que está nas autorizações de internação,
Valmir teria morrido duas vezes antes de sair vivo do hospital. A primeira
morte foi em 14 de setembro de 2009, a segunda, duas semanas depois. E, quando
ele realmente morreu,16 de outubro o papel mostra alta.
Irmã de Valmir: Engraçado, morre duas vezes? Eu queria morrer
duas vezes. Sabe por quê? Porque eu ia lá do outro lado ver o que tinha e
voltava.
As fraudes e os erros do sistema de pagamento das AIHS já
foram alvo de questionamento do Tribunal de Contas da União.
“Sempre que há algum erro, há perda de dinheiro público. O
erro ele nunca é inocente.
O Tribunal de Contas, a partir dessas denúncias, deve fazer
uma nova investigação”, afirma o ministro do TCU Jose Jorge.
Nossa equipe foi até os hospitais e as clínicas que atenderam
as pessoas mostradas nesta reportagem.
Na clínica Santa Helena, em Cabo Frio, que recebeu por duas
mortes de Sinésio, a direção não quis gravar entrevista. Mas reconheceu que a
cobrança dupla aconteceu.
Uma auditoria realizada em setembro de 2012 pela Secretaria
Estadual de Saúde e pelo SUS apontou o problema. E, em janeiro deste ano quase
quatro anos depois da AIH ter sido paga, a clínica foi condenada a devolver o
dinheiro.
Na Santa Casa de Barra Mansa, que declarou a morte dupla de
um paciente, Valmir, uma apuração interna será aberta.
“A gente vai solicitar que faça algumas correções para que
isso ano avance”, garante Emerson Silva, gerente de faturamento da Santa Casa
de Barra Mansa.
O Fantástico foi até a casa de saúde e maternidade Santa
Maria em São Gonçalo, que cobrou por uma operação de próstata em Crenilda. Mas
a instituição não está mais funcionando no local. Os responsáveis pela clínica
não foram encontrados pela reportagem.
Em São Paulo, o hospital municipal Vereador José Storopolli,
que declarou que Julio Cesar estava morto, admitiu o erro. Uma investigação foi
aberta.
“A gente vai investigar até o final como que isso pode ter
acontecido dessa forma, chegar a essa falha administrativa”, afirma Luis
Fernando Paes Leme, diretor-técnico do hospital.
Em Salvador, o hospital geral Roberto Santos, que cobrou pelo
parto em Ednilton, questionou inicialmente os dados apresentados pelo
Fantástico.
"Não há nenhum registro com o nome dele, de seu
Ednilton, para a cobrança de parto. A série numérica da qual vocês apresentam é
de fato de uma pessoa do sexo feminino", diz Lerley Ladeia,
diretor-administrativo do hospital Geral Roberto Santos.
As informações oficiais do SUS comprovam que a AIH do parto
tem os dados de Ednilton.
Mas o sexo do paciente foi preenchido pelo hospital como
feminino. Depois da entrevista, a secretaria estadual de saúde, responsável
pelo hospital, admitiu o erro e afirmou que irá apurar o caso.
O Ministério da Saúde confirmou que todas as autorizações de
internações hospitalares mostradas por esta reportagem contêm irregularidades.
“Não é o ideal, nos sabemos disso. Por isso, nosso esforço de
estar produzindo novas versões do sistema. Mas ele é um sistema confiável. De
um total de cerca de 12 milhões de internações no ano nos tivemos mais de 10%
delas rejeitadas por inconsistência por críticas que o sistema conseguiu fazer.
Ainda insuficiente, como a própria matéria de vocês está mostrando”, explica o
diretor de controle Fausto Pereira dos Santos.
“Esse é um sistema furado no sentido de que quanto mais
dinheiro se for colocar nele, mais difícil vai ser de gastar ele bem”, destaca
José Jorge, ministro do TCU.
Para pessoas que tiveram os próprios nomes ou o de parentes
usados nas fraudes, o sentimento que fica é o da indignação.
Ruana : Acho uma vergonha.
Julio Cesar: Pelo menos ligar, você tá vivo aí? Porque se
você não chegasse lá em casa com esse papel eu não saberia disso aí nunca.
Ednilton :Tantos impostos que nós pagamos. Era pra ter uma
coisa de qualidade.
Armélia - Hoje, a saúde, quando os pobres precisam de saúde
hoje, tem que está na mão de Deus.
Mulher do Ednilton - Quem vai olhar isso? Quem vai olhar? Tem
algum governante olhando pra isso?
O Diário Oficial da União vai publicar nesta segunda-feira
mudanças no sistema de pagamento das AIHS, as autorizações de internações
hospitalares.
“O sistema traz um conjunto de novas críticas que vão impedir
que essas principais distorções de acontecerem no sistema de saúde brasileiro”,
afirma Fausto Pereira dos Santos.
O objetivo é aumentar a segurança e evitar fraudes.
“O sistema vai estar botando um ponto final na
incompatibilidade dos procedimentos com sexo, ou seja, procedimentos típicos de
mulher não poderão ser realizados definitivamente em homens e vice e versa.
Pacientes que foram a óbito, não poderão ser emitidas Aihs”, completa.
A alteração será realizada aos poucos e, a partir de
fevereiro de 2014 todos os hospitais do Brasil deverão usar o novo sistema.